Nelson, o árbitro que apitava com uma arma no bolso

Nelson, o árbitro que apitava com uma arma no bolso
Por: Dilmercio Daleffe

Nos anos 70, Nelson de Souza iniciava sua carreira como árbitro de futebol. Estava certo de sua decisão. Era uma paixão. Sabia de todos os desafios. Dos riscos. Das agressões verbais à própria mãe. Mas, na realidade do esporte, a coisa era mais conturbada. Mais séria. Então, diante de muitas ameaças, teve a façanha em apitar inúmeros jogos armado. Sim, em posse de uma Beretta – arma italiana utilizada por nazistas -, encarou as quatro linhas do campo sem nada temer. E quase tudo deu certo. Se bem que, por algumas vezes, apanhou. Outras, saiu escoltado pela polícia. Tudo normal, como sempre foi no futebol tupiniquim.

Em Campo Mourão, Nelson é mais conhecido que nota de R$2. Além de árbitro nas décadas de 70, 80 e 90, também era e ainda é, encanador. Participou inclusive, da construção do Hotel Santa Maria. As duas paixões, tubulações e apito, eram realizadas a seu tempo. Mas, hoje, já com as chuteiras penduradas, restaram os canos. Ele continua encanador. “Na vida precisamos estar ao lado de dois profissionais: um advogado e um encanador”, brinca ele.

Ainda aos 16, Nelson já era encanador. Aprendeu o ofício apenas como mero observador. Um curioso. Não largou mais. Mesmo sendo árbitro nos finais de semana, reservava outros dias aos encanamentos. A grana era melhor que no apito. Dois anos depois, foi convidado por um amigo, árbitro, para ajudar numa partida. Ele aceitou, embora não soubesse nem mesmo marcar um impedimento. “Naquele dia só levantava a bandeira para mostrar se a bola tinha saído”, disse.

O que era apenas uma diversão, tornou-se um desejo. Em seguida, obsessão. Não tinha outro jeito. Seu destino estava traçado. Então, em 1974, foi a Maringá. Durante seis meses concluiu o curso de arbitragem. A partir daí, apitou de tudo. Foram jogos amadores, escolares, empresariais e profissionais. Somente nas peladas de sábado, entre associados do Country Clube, foram 32 anos. E foi lá, uma das agressões sofridas. “O sujeito não aceitou o cartão. Covarde, veio correndo por trás e me deu uma voadora. Acertou os dois pés nas minhas costas. Fui parar no hospital”, lembrou.

Com o tempo, Nelson passou a integrar os quadros da arbitragem paranaense. Chegou a fazer um “atletiba”. Atuou nas séries A e B do estadual. E passou por muitos perrengues. “Eu era escalado nos piores jogos. Os mais conturbados. Passei por muitas ameaças. E, por isso, comecei a ir armado”, disse. Na mão, o apito. No bolso de trás, os cartões. No da frente, a Beretta. Pronto, que o jogo inicie.

Nelson conta que as quatro linhas compõem um cenário complexo de sentimentos. Por um lado, a paixão do torcedor. Do outro, a competitividade, a vontade dos jogadores em ganhar. O juiz fica ao meio de tudo isso. Não consegue agradar a todos. E, não é à toa, que tem a mãe xingada, também, por todos. Então, receoso em apanhar, Nelson se armou. “Tinha um bandeirinha que atuava comigo também armado. Ele improvisou uma faca no cabo da bandeira. Se o pau comesse pro lado dele, iria se proteger”, disse.
Segundo ele, também conheceu outro auxiliar que encheu o cano da bandeira com concreto. Virou uma arma. O problema era levantá-la a todo momento.

A experiência também preparou Nelson. Segundo ele, muitos macetes foram utilizados para a sua proteção. Por dez anos, ele foi investigador de polícia, em Campo Mourão. Conhecido pela rigidez no serviço, foi apelidado como “tenente”. Aproveitando esse gancho, chegava aos estádios e já convocava os pm´s do jogo. “Eu me apresentava como tenente. E pedia os nomes deles. Dizia que enviaria junto ao meu relatório. Não dava outra. Tinha tratamento vip”, lembrou. Nelson lembra da vez que um torcedor o xingava pela cerca, sem parar. Bastou um dos pm,s ver a cena, para afugentá-lo dali.

Cascavel, década de 80. Nelson chegou para apitar uma partida da série B do paranaense, contra o Apucarana. No vestiário, enquanto se arrumava, o maqueiro alto e forte do time local decidiu fazer uma “visitinha”. “Qual de vocês vai apitar essa bosta? Se a gente não ganhar não sairão vivos daqui”, teria dito. Nelson, calmamente, colocou sua Beretta ao lado do banco, olhou dentro dos olhos do sujeito e disse: “Quem vai apitar essa bosta sou eu. E se vocês não ganharem, não é problema meu”. Antes de sair, ainda assustado, o maqueiro teria oferecido uma massagem, como uma espécie de boas vindas.

NELSON

Nelson está com 73 anos. Possui quatro filhos, frutos de três casamentos. Atualmente, é solteiro, mas, namorando. Mora numa meia água, aos fundos da própria casa, cedida a uma das filhas. Como reside ali sozinho, o local é uma bagunça só. E ele não está preocupado. É o seu cantinho. Nascido em Apucarana, em 1951, trabalhou na roça até os 16. E por trabalhar desde os 7, não concluiu os estudos. Fez até a quinta série.

O pai era um “mateiro”, ou seja, abria o mato para a formação de fazendas. A mãe sempre foi do lar. Juntos, tiveram dois filhos. Nelson é o mais velho. Deixando a lavoura, se embrenhou na construção civil. Era o apontador, uma espécie de fiscal da obra. Mas, de tanto observar encanamentos, virou um encanador. Também trabalhou em loja de construção e em secos e molhados. Mas, a partir de 74, seus caminhos já haviam sido traçados. Carregaria pra sempre o apito e as tralhas de canos. Não é exagero dizer que, em ambas profissões, virou professor. Deu aula sobre hidráulica, no Senac, e sobre arbitragem, pelo Paraná a fora.

Palmeirense, Nelson nunca escondeu a paixão pelo futebol. Chegou a jogar no gol, ainda aos 11. “Eu era alto e bom. Jogava no meio dos adultos. Mas, franzino, desmaiei algumas vezes com boladas no estômago. Naquele tempo, a bola era de capotão. Em dia de chuva, ela vinha com peso de cimento”, disse. Fã do zagueiro Ferrari, do Palestra, também jogou na zaga. Mas o prazer foi logo substituído pelo apito.

A paixão pela arbitragem começou bem cedo. Vendo que tinha aptidão, a mãe fez o uniforme. Era todo preto. Também ganhou chuteiras. E, quando adentrava ao campo, lá estava ele, impecável. Imponente com sua altura. Roupa passada. Chuteiras brilhando. “Sempre tive muito zelo pelo meu uniforme”, disse.

Pelo paranaense, Nelson apitou entre 1974 e 2002. Porém, em 84, foi indicado a árbitro da CBF. Foi o primeiro da cidade a tal conquista. Em seguida, também obteve o mesmo respaldo como juiz de futsal. Numa das partidas nacionais, ele não se esquece do cascudo que levou de um torcedor. “A arquibancada é muito próxima da quadra. Então, num momento em que fiquei de costas aos torcedores, um deles me deu um cascudo na cabeça”, disse.

Também foi nas quadras de futsal quando um jogador, engraçadinho, ainda caído, baixou o meião de Nelson. Todo o ginásio riu. A piada até foi boa. Mas o constrangimento veio depois, e contra o piadista. “Peguei o cartão vermelho e disse a ele: levante meu meião agora. Com medo de ser expulso, se ajoelhou e arrumou o que havia feito. A torcida, que antes ria, agora gritava, toma, toma”.

CORRERIA

Final da década de 70. Em Nova Londrina, Nelson foi apitar o jogo do time local contra o Ubiratã, pela série B. Acontece que o Ubiratã ganhou. E com um gol de pênalti. É claro que a torcida não aceitou. Acoado no meio de campo, foi cercado, primeiro, pela polícia. Depois, pelos torcedores. Teve que deixar o campo num camburão.

Nos anos 80, um jogo entre Atlético Paranaense e Guarapuava acabou com a vitória do primeiro. Um gol impedido. Jornais da cidade estamparam o erro da arbitragem. A torcida não perdoou. Uma semana depois, era a vez do Guarapuava receber o Apucarana. Como sempre, Nelson foi escalado. Ele sabia que sofreria muita pressão. Seria mais uma quizumba pro curriculum.

Ao chegar ao vestiário, as paredes estavam todas com os jornais locais colados. E a foto na capa, dando validade ao gol que, deveria ter sido anulado. A pressão já havia começado. “Quando olhei aquilo, não acreditei. Chamei alguém do time local e disse que, se não tirassem tudo aquilo, em 15 minutos, não teria jogo”. As ameaças agora, eram de Nelson. E deu resultado. Ele virou o jogo e tudo foi retirado.

Numa partida pelo amador, no Roberto Brezezinki, em Campo Mourão, Nelson expulsou um jogador. Ele havia sido desleal contra um dos adversários. Cabisbaixo, o sujeito saiu de campo. Mas, vendo que já estava expulso, decidiu retornar. “Ele voltou e meu deu um chute na perna, pelas costas. Foi covarde. Depois correu”, lembrou. Mas, arrependido, dias depois, o agressor pediu perdão pelo ato. Nelson aceitou.

Numa partida em campo neutro, em Guaíra, Nelson foi escalado para apitar Cornélio Procópio e Terra Roxa. Ele já havia sido alertado sobre o comportamento indisciplinado e arrogante de um jogador. Seria um grande problema. Mas, experiente, entrou sabendo o que iria fazer. Malandro, Nelson chegou ao atleta e sussurrou em seu ouvido: “Olha, tem um time que quer você. Eles pediram pra eu te avisar. Logo vão entrar em contato. E lá, o pagamento é em dia”.

Espantado e, contente com a notícia, o jogador quis saber mais. Nelson o cozinhou em banho maria, até o final da partida. Naquele dia, o camisa 9 não deu trabalho nenhum ao juiz. “Foi uma beleza. Possivelmente, o mais disciplinado da partida”, disse. O problema é que, um mês depois, Nelson se reencontrou com o fulano. “Fui apitar outro jogo dele. Aí ele chegou me cobrando pelo telefonema, que nunca recebeu. Pensei, é hoje que ele vai dar problema. Tive que fazer tudo de novo. Menti mais uma vez. E ele continuou se comportando”.

No campo, era uma guerra. Nelson conta que sempre teve que peitar jogadores esquentados. Embora, jamais baixasse a cabeça. “Eu falava pra eles: entre o leite dos meus filhos e do deles, daria importância aos meus. Jamais pestanejei. Se tinha que expulsar, eu expulsava”, disse. Comprometido com a sua função, Nelson diz que estava ali mais pela paixão, do que pelo dinheiro. “A grana não era boa. Hoje melhorou. Mas naquela época, era quase nada”.

Por duas vezes, dinheiro lhe foi oferecido. Segundo ele, nunca aceitou. “Numa delas, o diretor do clube me ofereceu um cheque gordo, antes da partida. Desconversei. Mas o time dele era muito superior ao outro. Tanto é que venceu por 6 ou 7 a 1. Após encerrar o jogo, no vestiário, apareceu com o cheque. O rasguei na sua frente. Depois o denunciei”, lembrou. No segundo episódio, outra equipe também apareceu com grana. Mais uma vez, o denunciou. O caso chegou à justiça.

Em 1980, Nelson fez o que poucos conseguiram. Em Campo Mourão, ele apitou um jogo amistoso entre o Sport e a Seleção de Ouro. Ou seja, em campo, Mané Garrincha, Carlos Alberto Torres, o “Capita”, e muitos outros astros da Seleção Brasileira. Orgulhoso da empreitada, tirou foto com os craques. Desta vez, não teve confusão. Apenas, comemoração.

ACIDENTE

A carreira como árbitro terminou em 2002. Além da idade, ele vinha se culpando por um acidente ocorrido numa das jornadas de arbitragem. Em 2000, a bordo de sua caminhonete, viajava com outros quatro membros do jogo que faria em Goioerê. Mas uma cratera na rodovia mudou tudo.

Ao passar pelo buraco, a direção ficou desgovernada. O veículo tombou, saiu da rodovia e se arrastou por quase 50 metros, rumo a um rio. Dois colegas morreram. Nelson teve o ombro fraturado. O acidente sempre o perturbou.

“Até hoje eu não esqueço. Nos 15 segundos em que tudo acontecia, passou um filme na minha cabeça. Aquilo me abalou profundamente”, revelou. Antes de entrar no carro, a ideia era levar dois de seus filhos, que também iniciavam nos campeonatos. A filha era mesária. E o filho, auxiliar. Mas ele mudou o itinerário dos filhos, minutos antes de sair em viagem. E os escalou para ajudar no jogo em Campo Mourão. “Antes de sair, minha neta me abraçou e disse: vovô, volta logo pra gente comer pizza. Enquanto o carro estava virado, a imagem dela veio na minha cabeça. Ela pedia pra que eu voltasse”, lembrou. Como prometido, ele voltou.

Distante do apito, Nelson diz que toda noite sonha com os campos. “Sonho que esqueci meu uniforme. Com partidas que fiz. Acho que isso sempre vai me perseguir”, explicou. A dedicação foi intensa. Tanto é que culpa a profissão por ter “perdido” dois casamentos. “Não vi meus filhos crescerem. Vendo isso hoje, podia ter ficado mais próximo deles. Mas encaro a arbitragem como uma espécie de vício. Não conseguia ficar longe”.

TIO VENDEU A CADEIA

Nelson poderia escrever um livro. São muitas histórias. Como a de um tio seu, preso na antiga cadeia de Campo Mourão, ainda na década de 60. Preso de confiança, estava na frente da unidade, do lado de fora. Certo dia, um homem bem vestido, chegou e perguntou se sabia de algum terreno para comprar. “Ele disse ao sujeito que aquele – da cadeia – estava. E ele era o dono. E acredite, o homem tirou um pacote de dinheiro e deu a ele. Ele vendeu a cadeia”, lembrou às gargalhadas.

Dias depois, o “novo dono” voltou e o encontrou, novamente, em frente a cadeia. “Vim trazer o resto do dinheiro. E vamos ao cartório assinar a papelada”. Mas o tio, malandro, perguntou: “Que dinheiro? Não vendi nada ao senhor. Aqui é a cadeia. É um terreno público. Como eu venderia algo que não é meu? E, além do mais, estou preso aqui”. Nelson adora contar o enredo.

Na década de 90, teve a façanha de ganhar na Quina. A sorte foi ganhar. O azar, repartir o prêmio com outros oito acertadores. Mesmo assim, era uma boa quantia. Os valores possibilitaram comprar dois carros, construir uma casa e comprar uma moto. Não é todo dia que se conhece um ganhador da loteria.

Há pouco tempo, Nelson descobriu um câncer de próstata. Foi ao médico. Para o seu azar, o doutor era um ex jogador de peladas. E já tinha sido expulso por ele. “Pensei comigo, agora lascou-se. Vai pedir para fazer o toque”. E não deu outra. Mas o santo de Nelson é mais forte. Após exames, constatou-se tratar de um tumor benigno. Deu tudo certo. Vida que segue.

Hoje, longe dos gramados, Nelson está perto dos filhos e dos netos. Até bisneto já possui. Vive tranquilo, ainda como encanador. Sujeito pacífico, também adora uma prosa. Daqueles que emenda uma história na outra. E, assim, decidiu viver um dia de cada vez, como deve ser. Para receber este repórter, se arrumou. Vestiu a antiga farda. Mostrou fotos, documentos e comentou sobre um tempo que, definitivamente, não volta mais. O apito agora, somente nos sonhos.





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