O legado de Anísio Morais

O legado de Anísio Morais
Anísio Morais durante entrevista com o presidente da Coamo, José Aroldo Galassini
Por: Dilmercio Daleffe


“Bom dia. Bom dia, amigos, senhoras e senhores ouvintes da Rádio Colmeia de Campo Mourão”. Durante 50 anos, o “jovem” Anísio Morais abria o seu programa assim. Possivelmente, foi a voz mais marcante do rádio mourãoense das últimas décadas. Dormia cedo. Acordava as 4. E já as 8, iniciava o horário, indo até as 9. Não era um mero matinal das ondas médias. Ele tinha uma conversa franca com a população. Simplesmente, a ouvia. E, definitivamente, dava voz aos anseios de um povo. Sem medo de errar, era a companhia de milhares de pessoas nas manhãs da cidade. Uma parceria imponente, boa e duradoura. Reflexo disso: ninguém o esquece.

Anísio abria a programação cumprimentando. Em seguida falava do tempo. E após, informava a data comemorativa do dia: dia do costureiro, da enfermeira. Antes de chamar o segundo bloco, já emendava com um entrevistado. Ele nunca foi político. Aliás, tinha pavor. A bem da verdade, possuía fobia de duas coisas: políticos e baratas. “Em casa eu é quem tinha que as matar. E pra ele sossegar, ainda tinha que mostrar elas mortas”, contou Aparecida, a companheira de Anísio.

Inquieto com os problemas sociais de sua comunidade, Anísio ficava indignado sem ver as soluções. Por inúmeras vezes foi combativo. E mesmo trabalhando na rádio do prefeito, não temia dar nome aos bois. Questionava secretários e servidores. Brigava com a Copel e Sanepar. E dava pitacos no noticiário nacional. Entrevistou governadores e até o presidente Fernando Henrique Cardoso. Sempre foi muito bem informado. A principal arma de um membro da imprensa.

Patrão de Anísio, o ex prefeito Tauillo Tezelli o define como um amigo de muitos anos. “Foi a voz da rádio, da cidade. Era um campeão de audiência”, disse. E mesmo sendo próximo, além de ser o seu empregador, por vezes, era questionado no ar. Tauillo diz não se lembrar. Mas quem ouvia o programa, não se esquece.

Luiz Ferreira Lima era o gerente da Colmeia no tempo de Anísio. “Ele era muito audacioso e sempre defendeu o que era correto. Questionava o prefeito ou fosse quem fosse, no ar ou cara a cara com o entrevistado. Eu, como gerente, às vezes, ficava em situação difícil por ele estar entrevistando um patrocinador da emissora e apertando o calo dele. Mas sabia que ele estava fazendo o certo”, lembrou. Anisio adentrou à Colmeia em 1964, em plena ditadura militar, ficando até 2005. Ano em que sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC), que comprometeu sua jornada.

Infelizmente, os arquivos de seus programas não existem mais. Foram destruídos há muitos anos num incêndio criminoso, num imóvel da Rádio Colmeia localizado no Jardim Cidade Nova. Mesmo assim, um dos programas continuou intacto, no acervo do Museu Municipal de Campo Mourão. Trata-se do dia 6 de setembro de 1990, quando entrevistou o prefeito de Mamborê e o deputado federal Paulo Pimentel. Aliás, sem papas na língua, ao vivo e à frente de Pimentel, afirmou não ter votado nele no pleito ao governo do estado, na década de 60. “Tá vendo. Perdeu a eleição”, retrucou Pimentel.

Marcelo, o filho, se lembra de uma entrevista bastante polêmica feita nos anos 80. Ao vivo com um ex prefeito, Anísio ouviu dele que, em breve, a ferrovia chegaria à Campo Mourão. Incrédulo, o comunicador o desafiou: “Se você trouxer a ferrovia aqui eu saio pelado nas ruas de Campo Mourão”. “Muita gente ainda lembra dessa entrevista. Foi engraçada na época. E ele não precisou sair pelado”, disse Marcelo.
Decano da rádio mourãoense, Anísio gostava de tomar o sagrado cafezinho das manhãs, antes de começar o programa, ao lado dos amigos do Bar Aparecida, Jorge e Simão. O prédio da Colmeia ficava na Capitão Índio Bandeira, em frente ao bar. Então, antes de subir à rádio, deliciava o “pretinho” com uma ótima prosa junto aos amigos, donos do Aparecida.

Marcelo, filho de Anísio, se recorda de uma entrevista que o pai fez com o então governador Jaime Lerner. Após o término do programa, os dois desceram os elevadores do Antares e, juntos, foram até o Bar Aparecida. Lá tomaram um cafezinho rodeados por toda a imprensa. Tempos que não voltam mais. O bar acabou. Seo Jorge morreu. Anísio se foi.

ANISIO MORAIS

Anísio dos Santos Morais veio de uma família modesta, natural de Lins, São Paulo. Francisco, o pai, teve oito filhos. Então, em 1957, decidiram deixar o interior paulista ao paranaense. Moraram em Goioerê. E somente em 1962, se mudaram à Campo Mourão.
Na cidade empoeirada, quase sem asfalto, Francisco, Anísio e outros dois irmãos trabalharam em uma serraria, onde é hoje a garagem da Viação Mourãoense. Tempos depois o jovem Anísio mudou de ramo, passando a consertar aparelhos de rádio e TV. E foi também neste momento em que recebeu um convite para atuar nas ondas médias ao lado do amigo Wille Bathke Junior. “Ele passou a narrar futebol. Chegou a ir ao Couto Pereira fazer um jogo”, lembrou o filho Marcelo.

Anísio adorava futebol. Tinha o Santos, em São Paulo. E o Botafogo, no Rio. Conta a família que, após deixar as narrações esportivas, em 1978, ele lançou na Rádio Colmeia o programa “Anisio Morais Notícias”. Era um novo formato, levando a população informações e entrevistas. Mas, receosa, a direção logo deu a letra: “Faça o programa. Mas não temos verba para pagar você”. Assumindo o risco, Anísio peitou a iniciativa. E ficou dois anos sem nada receber. Até entender que a publicidade seria a grande saída. E foi. “Eram tantos patrocinadores que ele tinha que escolher qual aceitar. Depois disso, o programa nunca mais parou. Sendo um sucesso até 2005”, lembrou Aparecida.

Fora da vida profissional, Anísio tinha uma grande paixão: a pescaria. Todos os finais de semana, ao lado do filho e dos amigos, lançava a isca sobre as águas da represa Mourão. “Era a vida dele. Todo mundo conheceu essa paixão dele”, lembrou Marcelo.

CASAMENTO

Ao mesmo tempo que começava a ganhar sua própria grana, em 1964, conheceu a primeira e única mulher de sua vida: Aparecida. “Eu tinha 16 anos e trabalhava numa loja de roupas, ao lado do Armarinhos Continental, chamada A Triunfal. Anísio ia ali todos os dias. Era amigo do gerente. Então começou a me paquerar”, lembrou ela.

Acontece que “Cida” não queria nada com ele. Com princípios consolidados na Igreja Católica, queria ser freira. Mas o rapaz era bastante insistente. E ganhou a moça. “Você não vai ao convento, não. Vou falar com seus pais. Vamos namorar e mais tarde, nos casar”, disse ele à jovem Aparecida. O namoro durou quatro anos, se casando em 1968. Nunca mais se largaram. Da relação nasceram Marcelo e Mariana. Que sempre estiveram ao lado dos pais. E agora, juntos à Aparecida. Conta a companheira que o marido era bastante honesto. Correto. Um homem de família. Mas ao mesmo tempo, um sagitariano com um péssimo costume: a teimosia.

SAÚDE

Até 1994 Anísio tinha o costume de ir ao Clube Mourãoense. Lá, participava de uma roda de amigos. Uma roda movida a cerveja, defumados e aguardentes. Certo dia, com dores na nuca fez exames. Descobrindo estar com pressão alta, quase explodindo. Então, mudou de vida. Melhorou a alimentação, controlou o álcool, passando a caminhar todos os dias.

Mas em 2005, o destino lhe pregaria uma grande peça. Numa noite de intenso frio, já na cama, estava inerte. Sem reações, foi levado ao hospital. Era vítima de um AVC. Dias depois, ao sair, estava com a fala e coordenação motora comprometidas. Chegava ao fim a carreira como comunicador.

Durante anos se manteve recluso, distante dos holofotes, apenas se recuperando. Os movimentos retornaram. Mas a fala continuou debilitada. Passou a ser refém de uma penca de remédios, o que o afligia. E, mais uma vez, pela teimosia, Anísio acabou deixando os remédios indicados após o AVC de 2005. Conta o filho que, até o último ano, Anísio tomava oito tipos de comprimidos. Detestando o ritual de ingeri-los, um a um, a família buscou médicos que resumiram os oito em apenas dois. E tudo ia bem.

E, após realizar vários exames, constatou-se que a sua saúde ia de boa a excelente. Pronto. A teimosia agora viria com tudo. Sabendo que estava bem, então comunicou à família que não mais tomaria os remédios. Todos foram contra. “Eu disse a ele que a saúde estava boa devido aos medicamentos. Mas ele não quis saber”, lembrou Marcelo. E as consequências não demoraram a aparecer.

Em março, o SAMU foi chamado. Anísio reclamava que não estava enxergando. Foi internado por cinco dias. Quando saiu, o movimento das pernas estava comprometido. Passou a ficar em casa. E vendo que a sua independência havia, de certo modo, acabado, ficou deprimido. “Ele não via mais TV. E as informações que sempre buscou, haviam parado. Ele estava bastante triste”, contou Marcelo.

Então, em 12 de maio, retornou ao hospital. Muito possivelmente, vítima de um novo AVC, estava fraco. Sem reações. Mas, medicado, se reanimou. Dias depois foi internado na UTI. O motivo: não mais se alimentava. A luta de Anísio durou até as 8h40 da manhã do último domingo (18/5). A família chegou ao hospital as 10h. E foi ali quando souberam que ele não mais estava neste plano terreno. As causas da morte foram relacionadas a pneumonia, AVC, insuficiência renal aguda e hipertensão arterial sistêmica.

LEGADO

Anísio fazia parte da imprensa “nobre” de Campo Mourão. Mesmo sem diploma ou cursos na área, atuou corretamente, com ética. Era uma espécie de prático, atuando com o bom senso necessário. Foi combativo, audacioso, corajoso. Certa vez, ao vivo, indagou um político do por que a coisa pública não dava certo. E ainda comparou instituições públicas a empresas privadas. O político não conseguiu dar uma resposta à altura da pergunta.

O profissionalismo era tão grande que dizia: “quem usa o rádio não pode ter gripe. Tem que estar com a voz em dia”. Então, como num ritual diário fazia uma mistura com alho, gengibre e pimenta. Colocava azeite e ingeria no jantar. Como consequência, o cheiro ficou impregnado no estúdio.

Definitivamente, Anísio tinha algo a mais que a maioria dos repórteres e comunicadores. Não era à toa que era ouvido por tantas pessoas e por tanto tempo. Ele tinha credibilidade. Tinha paixão no que fazia. E jamais se vendeu na profissão. “Bom dia a todos. E amanhã voltamos se Deus quiser”. Mas ele não quis.



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